quinta-feira, 12 de junho de 2008

Labirintos da memória: redesenhando minhas histórias de leitura


Percorrer os campos e vastos palácios da memória é uma silenciosa aventura do espírito a se defrontar com tesouros guardados com generosa meticulosidade.

(Ana Cristina Chiara, 1993)

Antes de começar a rememorar minhas histórias de leitura, destaco a memória como elemento-chave para alinhavar sentidos e reflexões em torno do ato de ler, visto que rememorar requer o uso dessa propriedade de conservação de certas informações.

Cresci num ambiente que instigava a leitura, a começar pelas paredes do meu quarto que eram decoradas com bichinhos e personagens de pano, que mexiam com minha imaginação. Minha mãe adorava contar histórias. Histórias de sua infância, de contos de fada, fábulas. E isso me fascinava. Lembro-me, também, que, aos quatro anos, chegou à nossa biblioteca a coleção de Monteiro Lobato. Acredito que minha paixão pelos livros e pela leitura tenha começado por aí: Reinações de Narizinho, Emília no país da Gramática, As caçadas de Pedrinho...

Adorava a estante da biblioteca da minha casa. Parecia uma biblioteca ambulante, pois ora se encontrava na sala de estar, ora no quarto dos meus pais, ora no alpendre e até no quartinho dos fundos. Parodiando Bachelard (1993) que diz que a casa é a nossa primeira referência, digo que a biblioteca foi o meu primeiro universo. O que não implica dizer, concordando com Bachelard, que minha casa abrigou meus devaneios, meus sonhos, através da itinerância da biblioteca paterna. Acredito que por conta disso, sempre fui uma criança que sentia a necessidade de celebrar a ludicidade não só através dos brinquedos, das bonecas, do velocípede, mas também dos livros.

Tanto na infância quanto na adolescência, ficava horas na revistaria Direli, em Juazeiro – BA, lendo gibis, revistas de horóscopo, de receitas, de fotonovela, caça-palavras, Sabrina, Bianca, Júlia. Até hoje gosto de ler revista de horóscopo. Acrescentaria tipos como Ana Maria, Boa Forma, best sellers. Vergonha!? De forma alguma, gostaria até de deixar registrado o que Lahire (2004) defende acerca da leitura. Segundo esse autor, sendo a leitura heterogênea, as estatísticas não deveriam reduzir o número de leitores por conta de critérios, como gênero textual. Não importa quantos livros foram lidos ou que tipo de livro ou leitura foi efetivado. Se não se lê do ponto de vista estético, lê-se de outro ponto, o do ético.

Pensando assim, minha relação com a leitura estende-se cada vez mais. O dia todo à espera de uma oportunidade para ler: numa fila de banco, no supermercado, na sala de espera do médico/dentista, sentada numa cadeira de ônibus ou do carro. Ao sair, espero uma chance de encontrar pelo caminho uma livraria, um sebo, uma biblioteca. Seja para sentir o cheiro dos livros, das revistas, da própria livraria (que cheira a papel), ou apenas para abrir as páginas, folhear, passear com os olhos as palavras, as imagens, filtrar uma frase, vasculhar o índice, até encontrar algo que realmente naquele momento me interesse e eu possa levar para casa.

Percebo que sou compulsiva no que diz respeito à compra de livros, mas é algo que me faz sentir bem. Acredito que é incurável: depois de começar, não se consegue mais parar. Mas a bibliofilia sem leitura não tem sentido. Compro, leio, retextualizo, transformo... Não sou colecionadora.

Atualmente, não tenho uma biblioteca que comporte todos os meus livros. Quando chega mais um, os cômodos vão ficando cada vez com menos espaço. Há livros na estante e na escrivaninha do meu quarto, no quarto dos meus filhos, até em meu guarda-roupa acomodo-os. Mário de Andrade não tinha uma biblioteca de madeira ou recheada de livros famosos, pelo contrário, os guardava em seu quarto em mesinhas e nem por isso deixou de ser um grande leitor e um admirável escritor.

Formar-se leitor é um trabalho para a vida inteira; é uma história. Cada leitor deve viver o seu enredo de amor aos livros, de busca aos textos, de convívio com os autores e suas idéias, de maneira a entrecruzar seu dia-a-dia com as vidas paralelas que as narrativas produzem.

Admiro Sanches Neto (2004) por ter herdado sua biblioteca partindo de um mundo sem livros, diferente de Anne Fadman (2002), escritora americana que, em seu livro Ex-líbris: confissões de uma leitora comum, ressalta a importância de ter nascido em uma família de pais escritores e ter herdado uma vasta biblioteca paterna. Cada um com sua história de leitura. O que importa não é se encontramos os livros cedo ou tarde, mas a nossa relação com eles. Hoje, Sanches Neto diz que em sua casa os livros se espalham por todos os lugares: banheiros, salas, quartos e cozinha. E novos exemplares continuam chegando.

Acredito ter rememorado alguns momentos da minha história de vida que me fizeram uma leitora em contínua formação.


REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CHIARA, Ana Cristina. de R. Leitura e memória. PROLER/Seminários de leitura, Goiânia, 30/04/1993.

FADIMAN, Anne. Ex-libris: confissões de uma leitora comum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

LAHIRE, B. Sociología de la lectura. Barcelona: GEDISA, 2004.

SANCHES NETO, M. Herdando uma biblioteca. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004.

(SOUSA, Denise Dias de Carvalho Sousa.Labirintos da memória:redesenhando minhas histórias de leitura.In:A Letra. Jacobina.Maio, 2008, p.2.)




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