domingo, 12 de dezembro de 2010

Entretantos e Finalmentes

O genial trapalhão Mussum deu mais contributos à nossa língua que muito acadêmico empolado
 
Zeca Baleiro 

Eu era menino quando o compositor Paulo Diniz musicou o belo e verborrágico poema José, de Drummond, e fez o público cantar palavras pouco comuns ao vocabulário da canção, como "utopia" e "teogonia" - uma grande faceta, não resta dúvida. O povo também cantou "inzoneiro", "merencória" e "trigueiro", contidas na pernóstica letra de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, que gerou uma sequência de sambas-exaltação com palavras igualmente raras e às vezes inadequadas, quase sempre como uma propaganda interesseira do Estado Novo, isso bem lá atrás. 

Antes ainda, bem antes, eram os seresteiros que faziam a turba cantar versos parnasianos, cheios de palavras nada usuais, que pareciam escolhidas a dedo no dicionário. Catulo da Paixão Cearense, Cândido das Neves, o "Índio", e Vicente Celestino, "o ébrio", foram alguns desses artífices de versos pomposos como: "prossegue sempre em flóreas sendas, sempre ovante". Ou: "álgida saudade me maltrata", e por aí vai. 

Ex-ministro do governo Collor, Antonio Magri não é lembrado por nenhum feito político. Mas ninguém se esqueceu do absurdo certa vez por ele proferido, que consagrou o uso da inexistente "imexível". O ex-presidente Fernando Henrique também deixou sua marca no vernáculo presidencial ao reabilitar o velho e brejeiro "nhenhenhém". 

Além de poetas, compositores, ministros e presidentes, personagens de novela e humoristas a bordo de seus criativos bordões tornaram-se responsáveis por algumas invenções vocabulares dessas que o público assimila e reprocessa e cujo uso cristaliza-se em nossa fala corrente quase sem que se perceba. O genial trapalhão Mussum, por exemplo, deu mais contributos à nossa língua que muito acadêmico empolado e cheio de teses. Em seu "dialeto", bunda ganhou as lúdicas alcunhas de "poupança" ou "forévis". Cachaça em sua boca virou "mé". É dele também a mais expressiva interjeição de espanto que já se ouviu: "Cacildis!" 

E quem não repetiu as blagues inspiradas do personagem de Paulo Betti em Tieta do agreste - "nos trinques", "Sum Paulo", etc. -, exageradas pelo sotaque baiano da TV Globo? O clássico personagem Odorico Paraguaçu, de Dias Gomes, eternizado na tevê pelo imenso ator Paulo Gracindo e agora revivido no teatro por Marco Nanini, também deixou seu legado de firulas e gagues, entre estas a impagável "vamos deixar de lado os entretantos e partir pros finalmentes". 

Havia um locutor esportivo no Maranhão que, sempre que queria enfatizar a grande confusão dentro da área, berrava: "Olha o lançamento... que cu de boi na grande área!" Não tenho conhecimento veterinário suficiente para saber que terrível aspecto pode ter o ânus (ou furico ou fiofó ou zé-de-quinca ou oritimbó) bovino, mas pela expressão penso que posso deduzir. Ainda hoje, quando me deparo com uma grande zona, na rua, em casa, na mesa do escritório, exclamo, quase sem querer:
- Eta cu de boi!... 

P.S.: Nenhuma língua sobrevive sem invenções ou renovações, e nesse aspecto a língua portuguesa, e por que não dizer brasileira, é das mais prodigiosas. Mesmo assim, acho a nova reforma ortográfica uma grande tolice. Salvo a extinção do trema, chatinho, obsoleto e inútil, não vejo razão de ser para as novas regras, e me recusarei até o fim (pelo menos até o fim de 2012) a escrever assembleia sem é e enjoo sem ôo, o que considero um absurdo, um contrassenso (e agora, Jesus, com ou sem hífen?)... 

Publicado na revista Isto é em 14/02/2009. 
 
O maranhense Zeca Baleiro é músico e compositor. Lançou em 2010 os CDs Concerto e Trilhas (Saravá Discos), além do livro Bala na Agulha (reflexões de boteco, pastéis de memória e outras frituras) . Para mais informações consulte o site www.zecabaleiro.com.br .

Um comentário:

Otelice disse...

Pois é... Costumo dizer que não precisa (e nem adianta) stress linguísticos, imposições por vezes desnecessárias.Afinal, é mesmo o povão quem comanda a festa. Concorda, amiga?
Beijo no coração.rrs